É paradoxal a relação entre as guerras e os avanços da medicina. Os horrores dos combates, o sofrimento e as perdas humanas acabam estimulando a evolução das técnicas e do conhecimento médico.
Foi em um cenário de guerra, especificamente a 2a Guerra Mundial, que nasceu a nossa especialidade, graças ao encontro de três ilustres cidadãos americanos: um político, um general e um caçador de patos.
O político chamava-se Franklin Delano Roosevelt. Filho de aristocratas, indivíduo atlético, aluno brilhante, que no verão de 1921, aos 39 anos, sofreu uma guinada na sua vida. Foi vítima de poliomielite o que o deixou paraplégico.
A partir de então, foram dois anos tentando voltar a andar; aprendeu muito sobre ortopedia e reabilitação e acabou conhecendo muita gente deste meio, como Norman Kirk, o general, um cirurgião geral que acabou se tornando ortopedista. Kirk foi nomeado por Roosevelt, então Presidente dos EUA, como chefe do Serviço Médico das Forças Armadas.
No início dos anos 40, havia uma enorme concentração de militares em São Francisco – CA e foi lá que Norman conheceu Sterling Bunnell, o pai da nossa especialidade, o caçador de patos (fig 1).
Sterling Bunnell
Nasceu na Califórnia, formou-se em medicina pela UCLA – São Francisco. Serviu na França durante a Segunda Grande Guerra, na equipe de Neurologia.
Ele adorava pássaros e animais. Durante a guerra, aprendeu a pilotar e ao retornar aos EUA, comprou o seu próprio avião, que usava para o trabalho e o lazer.
Em um destes passeios, tentando pousar no Parque de Yosemite, sofreu um acidente e fraturou o colo do fêmur, o que o condenou a dor e claudicação pelo resto da vida.
Era um homem brilhante. No período entre as guerras, escreveu muitos artigos sobre cirurgia nas mãos.
Defendia o conceito do “ CIRURGIÃO REGIONAL”, profissional que pudesse cuidar dos ossos, articulações, nervos, além de reconstruir pele e partes moles.
Em 1944, foi convidado por Norman Kirk para ajudar a tratar as lesões de membros superiores dos soldados americanos, que voltavam das frentes de batalha na Europa, África e Ásia; eram tão numerosos que foram batizados de “LEGIÃO DE ALEIJADOS”.
Aos 62 anos, Bunnell abandonou a sua clínica privada e passou a viajar pelo país, criando nove centros de tratamento da mão os “HAND CENTERS” (fig 2).
Até 1945, aproximadamente 10 mil pacientes já haviam sido tratados nestes centros. Muitos jovens cirurgiões foram treinados nestes centros como Barski, Littler, Fowler entre outros. O sucesso foi tão grande que em 1946, fundaram a Sociedade Americana de Cirurgia da Mão.
OS PIONEIROS NO BRASIL
Enquanto isso no Brasil, fortemente influenciados por ingleses e franceses, alguns cirurgiões gerais e plásticos realizavam cirurgias nas mãos. Alguns deles acabaram construindo os alicerces para a evolução da especialidade no nosso país: foram os nossos pioneiros!
Alípio Pernet
Nasceu em Manaus em 1913. Formou-se pela Faculdade de Medicina da Bahia. Foi médico da Força Aérea por 18 anos. Era cirurgião geral e plástico.
Estagiou no Brook Army Medical Center no Texas e nos serviços de Pulvertaft, Gillies e Watson Jones. Publicou 60 trabalhos científicos. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica e da Sociedade Brasileira de Cirurgia da Mão (SBCM), biênios 65-67 / 71-73. Presidente do Primeiro Congresso Brasileiro de Cirurgia da Mão.
Chefe da Clínica de Cirurgia da Mão do Hospital Municipal de São Paulo. Faleceu em São Paulo em abril de 1992.
Danilo Gonçalves
Era natural de Recife onde se formou médico em 1939. Viajou para o Rio de Janeiro, onde fez a sua especialização em Cirurgia Geral.
Em 1951, recebeu bolsa do Conselho Britânico o que lhe permitiu estagiar com Trueta, Allen, Pulvertaft e Agnes Hunt entre outros. Danilo foi o primeiro presidente da SBCM. Presidiu o Segundo Congresso Brasileiro. Chefiou a Ortopedia do Hospital Souza Aguiar e o Serviço de Mão do Hospital da Lagoa. Faleceu em novembro de 1983.
Henrique Bulcão de Moraes
Nasceu em junho de 1925. Em 1949, formou-se na Escola de Medicina e Cirurgia. No mesmo ano, formou-se em Nutrição.
Especializou-se em Cirurgia Geral. Em 1951, estagiou no Serviço de Allen em Boston. Em 1952, começou residência no Baltimore City Hospital. Iniciou seu aprendizado em cirurgia da mão com Raymond Curtis. De volta ao Brasil, montou o Serviço de Cirurgia da Mão da Santa Casa / RJ. Foi presidente da SBCM (1963-65) e do Primeiro Congresso Internacional da sociedade.
Lauro Barros de Abreu
Nasceu em Tatuí – SP em outubro de 1913. Formado pela Faculdade de Medicina, turma de 1936. Assim como os outros pioneiros, especializou-se em cirurgia geral.
Em 1944, conseguiu uma bolsa do Conselho Britânico de Medicina. Lauro estava dividido, acabara de se casar e ser convidado pelo Prof. Godoy Moreira para trabalhar no Hospital das Clínicas. Mesmo assim decidiu aceitar o desafio e viajar para a Inglaterra. Foi orientado a não embarcar no Brasil, pois nossa costa estava infestada de submarinos alemães e italianos. Foi de trêm para a Argentina. Haviam muitos espiões nazistas na América do Sul e Argentina; quando chegou em Buenos Aires não sabia ao certo nem quando, nem onde embarcaria. Após três dias incomunicável foi acordado de madrugada e levado até um porto, onde o esperava um destroier inglês, que veio buscar carne enlatada no Uruguai.
Nos primeiros dias, tiveram que navegar em zig-zag, para despistar os submarinos inimigos. Durante a viagem, Lauro participou de exercícios de tiro, o que lhe custou a perda temporária da audição. Após 28 dias, desembarcava em Liverpool. Estagiou com Gillies, Watson Jones, Seddon, entre outros.
Publicou 117 trabalhos. Foi presidente da SBCM em 1961-63 e Chefe do Grupo de Cirurgia da Mão do HC-FMUSP.
Orlando Graner
Era paulista da capital, nascido em agosto de 1914. Em 1941 formou-se na Fac. de Medicina da USP e logo iniciou seu internato no Pavilhão Fernandinho Simonsen. Foi lá que criou e chefiou, com o apoio do Prof. Domingos Define, o primeiro grupo de Cirurgia da Mão no Brasil, de 1945 a 1968.
Foi presidente da SBCM DE 1969-71, além de organizar os Serviços do Hospital do Servidor Estadual e da Escola Paulista de Medicina.
A SOCIEDADE BRASILEIRA DE CIRURGIA DA MÃO
No período após a 2a Guerra Mundial, o país recebeu a visita de renomados especialistas como Guy Pulvertaft, Watson Jones, Trueta e Sterling Bunnell. Isto serviu como estímulo para a criação da nossa Sociedade.
Em 1959, estavamos sob a batuta de Juscelino Kubitschek; as concessionárias estavam lotadas de DKWs e da recém lançada Rural; Fidel tomava o poder em Cuba, derrubando o governo corrupto de Batista; o Bahia era campeão brasileiro de futebol e Pelé, o artilheiro; as rádios começavam a tocar “Chega de Saudade” dos geniais Tom Jobim e Vinícius de Moraes; no cinema estreiavam Charlton Heston em “Ben-Hur”, Marilyn Monroe, Tony Curtis e Jack Lemon em “Quanto Mais Quente Melhor”. Foi quando, em 17 de junho de 1959, no Centro de Pesquisas Biológicas – RJ, na rua Camerino, às 20:30 horas, convidados por Danilo Gonçalves e secretariados por Henrique Bulcão de Moraes, 57 médicos assinavam a Ata de Fundação da Sociedade Brasileira de Cirurgia da Mão.
Depois de algumas jornadas e cursos, o primeiro grande evento da SBCM, foi o primeiro Congresso Internacional, realizado no Rio de Janeiro de 19 a 21 de julho de 1965. Bulcão foi o presidente do Congresso, que contou com aproximadamente 400 inscritos, tradução simultânea para vários idiomas e com a participação de grandes nomes da Cirurgia da Mão na época como: Erik Moberg, Joseph Boyes, Starck, O’brien, Kauko Vainio, os argentinos Firpo e Loda, além dos nossos pioneiros (Figs 4 e 5).
Também participou ativamente do evento Ivo Pitanguy, um dos fundadores da SBCM, chefe do primeiro setor de Cirurgia da Mão do Rio de Janeiro e vice presidente da SBCM de 1959 – 63.
Em 1965, Ronaldo Azze e Marcus Castro Ferreira, começavam a realizar os primeiros reimplantes de membros no Hospital das Clínica – FMUSP, criando em 1974 o primeiro Serviço Microcirurgia da América do Sul.
Outro acontecimento marcante na nossa história, ocorreu durante o Congresso Americano de Cirurgia da Mão em Chicago, em que a SBCM, representada por Alípio Pernet, participou da Fundação da Federação Internacional das Sociedades de Mão (Fig 6).
Além do Primeiro Congresso Internacional, foram 23 Congressos Brasileiros e inúmeros cursos e jornadas, desde 1967.
OS HERDEIROS
Almir Joaquim Pereira escreveu em seu livro sobre a história da Sociedade Brasileira de Cirurgia da Mão: ” A SBCM é uma árvore de boa linhagem, plantada e cuidada por homens de cultura, caráter exemplar, batalhadores incansáveis. Ao serem sucedidos, com orgulho, viram-na florescer, protegida por uma plêiade de profissionais que a tratam com desvelo”.
Pois bem, esta árvore de boa linhagem deu muitos frutos. Alguns destes frutos se tornaram presidentes da SBCM, como:
• Danilo Coimbra Gonçalves
• Lauro Barros de Abreu
• Henrique Bulcão de Moraes
• Alípio Pernet
• Orlando Graner
• José Raul Chiconelli
• Christovão Gama
• Luis Carlos Sobania
• Edmur Isidoro Lopes
• Arlindo Gomes Pardini Jr.
• Ronaldo Jorge Azze
• Walter Manna Albertoni
• Jacy Conti Alvarenga
• Heitor Ulson
• Mauri Alves de Azevedo
• Fernando Barros
• Edie Benedito Caetano
• José Maurício de Moraes Carmo
• Arnaldo Valdir Zumiotti
• Flávio Falloppa
• Osvandré Lech
• Claudio Henrique Barbieri
• Rames Mattar Jr.
Estes herdeiros colecionaram um grande número de conquistas que fazem da SBCM, grande como é.
O nosso passado é muito rico, deve ser sempre enaltecido!
As histórias são muitas e estão aí para serem contadas…
Autor: Dr. Sergio Augusto Machado da Gama
(texto retirado do site da Sociedade Brasileira de Cirurgia de Mão)